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Jornal Info no. 15

O significado da volta da Frente Sandinista ao Poder e a trajetória dos oposicionistas “de esquerda”

                                                                                                                             Prof. Dr. Ricardo F. Rabelo

              Como já analisamos anteriormente neste Jornal Info, o imperialismo estadunidense nunca manteve relações justas e respeitosas com a Nicarágua, como, de resto, nunca o fez para com os outros países da America Latina. Toda a história da Nicarágua é a história de uma luta para se afirmar como povo e como nação soberana, e essa luta tem sido travada contra um único inimigo feroz: os Estados Unidos da América. Na década de 70 do século XX , depois de  mais de 20 anos de enfrentamento e resistência com a ditadura dos Somoza, a Nicarágua finalmente fez sua Revolução Sandinista, que triunfou política e militarmente, derrotando frontalmente o império americano. Por isto mesmo, este nunca esqueceu a humilhação a que foi submetido pela Frente Sandinista de Libertação Nacional.

Esta experiência vivida pela Nicarágua ensinou aos seus governantes e os trabalhadores deste país o que é realmente o imperialismo: violência, guerra, destruição. Já se foi o tempo em que, pressionado pela presença de um Estado Operário no mundo, a URSS, fazia políticas de boa vizinhança e posava de grande incentivador do desenvolvimento dos países da América Latina. Atualmente, o imperialismo só tem uma alternativa para nós: ou se submete ou vamos destrui-lo. E a submissão significa também a destruição da soberania, a entrega dos recursos naturais, o desmantelamento da indústria nacional , etc. Nessa época o imperialismo estadunidense optou pela guerra contra a “ditadura” sandinista, impôs um pesado embargo econômico e bloqueou o acesso do país a empréstimos internacionais. Em contrapartida gastou mais de um bilhão de dólares na chamada “guerra de baixa intensidade” que significou a morte de pelo menos 30 mil nicaraguenses

Além disso, os EUA patrocinaram as tropas de 101 exércitos irregulares chamados de  “Contras”, cujas ações eram voltadas para a destruição, com bombardeios incessantes contra escolas, hospitais, cooperativas e centros comunitários – símbolos dos programas sociais dos sandinistas. Os “Contras” realizavam cotidianamente ataques a depósitos de combustível, bombardeavam portos e navios, queimavam plantações e destruíam pontes e estradas, imobilizando a economia, o que resultava em fuga de capitais e desemprego. Nesses ataques se usava de todo tipo de tortura e os assassinatos se davam de forma macabra. “Rosa teve seus seios cortados. Depois eles cortaram seu peito e arrancaram seu coração. Os homens estavam com os braços quebrados, os testículos cortados e os olhos esbugalhados. Eles foram mortos cortando suas gargantas e puxando a língua pela fenda” – relato de um sobrevivente de um ataque em Jinotega.

 De acordo com o manual da  CIA de 1983 para treinamento das atividades da Contra, intitulado Psychological Operations in Guerrilla Warfare (Operações Psicológicas na Guerra de Guerrilha) deveriam ser criados mártires para a causa falsificando cenas de violência e utilizando-se de fotógrafos estrategicamente localizados para promover uma imagem negativa do inimigo, inclusive causando a morte de seus próprios partidários . Com o objetivo de inventar a existência de uma força monstruosa diante do inimigo, não se fazia mais distinção entre realidade e ficção. Forjaram-se mentiras as mais absurdas para enganar o povo e criavam-se eventos que não haviam ocorrido.

 Em 1986 ocorreu o escândalo dos Irã-Contra que mostrou que a CIA vendia armas ao Irã (apesar da proibição legal existente) com o objetivo de financiar a compra de armas aos Contras. Outra fonte verbas dos Contras viria do narcotráfico, em particular a comércio  de crack nos EUA. Criou-se um total cinismo com relação à distinção moral entre o bem e o mal o que levou a uma legitimação de conceitos como uma boa guerra, um bom crime, uma boa violação, uma boa mentira. Tudo isso para disseminar o assassinato e a tortura, a destruição de moradias e prédios públicos e o desmonte da economia e do tecido social de uma nação.  

O papel de entidades conhecidas dos EUA foi manipular midiaticamente a população e promover a  “fabricação do consenso” visando criar  uma opinião pública favorável aos Contras. Uma empresa de relações públicas, a Woody Kepner Associates, recebeu pelo menos 300 mil dólares para elaborar uma mitologia dos Contras como combatentes “do bem”. A NED (National Endowment for Democracy), desde esta época já fazia operações de mídia para favorecer o imperialismo. Esta entidade, desde a sua fundação em 1983, doava 100 mil dólares anuais ao jornal antissandinista La Prensa, pertencente à família Chamorro.

Um ano antes das eleições de 1990, o presidente George W. Bush chantageou os nicaraguenses avisando-os da manutenção do embargo econômico e da guerra caso eles não votassem na candidata neoliberal Violeta Chamorro. Isso explica por que a candidata da direita entreguista ganhou as eleições. Além da chantagem presidencial o governo americano aprofundou os ataques dos Contras e gastou 30 milhões de dólares com a CIA e 16 milhões com a NED para financiar jornais e partidos políticos antissandinistas. O resultado foi que o povo nicaraguense, sob a mira de armas, elegeu Violeta Chamorro, que se tornou a 5ª membra da família Chamorro a governar o país.

 Durante os anos de governos da direita neoliberal houve a completa destruição das conquistas sociais da Revolução, o que resultou  na drástica redução da qualidade de vida, com redução de 46 pontos no IDH, precarização do trabalho, aumento do desemprego, êxodo rural, e um aumento da miséria, da desigualdade social e da violência . Em 1996, 34% da população era analfabeta, enquanto em 1980, os sandinistas haviam a reduzido de 50,3% para 12,9% da população, meio de suas campanhas de alfabetização. Como resultado da reviravolta neoliberal, Nicarágua se tornou o 2º país mais pobre do hemisfério ocidental, depois do Haiti, com enorme dependência de recursos internacionais e de um sistema de ONGs para tentar abrandar os desastres do neoliberalismo.

A derrota eleitoral e a crise do Sandinismo

A derrota eleitoral de 1990, acompanhada pela queda do bloco socialista, provocou uma verdadeira ruptura interna na FSLN quanto questões ideológicas como a viabilidade do socialismo e do anti-imperialismo, a escolha dos métodos de luta e o tipo de partido que deveria ser construído. Este processo político se refletiu no Primeiro Congresso da FSLN, em julho de 1991. As questões vitais da luta revolucionária começaram a ser questionados por uma ala da Frente tais como a luta de classes, a economia planificada e a ditadura do proletariado. Esta ala da FSLN negou todos estes princípios e aderiu completamente às fórmulas relacionadas ao modelo democrático ocidental e à economia de mercado. Esta ruptura na verdade refletia a base de classe de seus integrantes, pois o grupo que propugnava um caminho social-democrata consistia principalmente de militantes que eram de origem ou aderiram a uma prática pequeno-burguesa e que ocupavam cargos institucionais (especialmente na Assembleia Nacional) e que apoiavam uma estratégia de diálogo com as outras forças políticas, ou seja, as tradicionais forças políticas oligárquicas.  O setor que continuava fiel aos ideais socialistas era composto principalmente de bases sindicais e aparatos partidários, ou seja, eram trabalhadores ou camponeses e se inclinavam para uma oposição abertamente beligerante ao governo neoliberal.

Essa divisão interna chegou ao ápice no Congresso Extraordinário de maio de 1994, em que havia duas posições:
1) Revolucionária, fiel às tradições da Revolução Sandinista, mas buscando um novo modelo socialista que, sem abandonar os princípios revolucionários históricos (socialização da propriedade, poder nas mãos das classes populares, legitimidade de todas as formas de luta revolucionária e uma organização política de vanguarda para dirigi-la), iria colocar na ordem do dia o programa do sandinismo em face das novas realidades da Nicarágua e do mundo, em paralelo com a elaboração de uma estratégia em correspondência com ela.
2) Social-democrata – Considera o marxismo-leninismo, o socialismo e o anti-imperialismo obsoletos, deslegitima os métodos violentos de luta, levanta a necessidade de a FSLN adotar formas políticas tradicionais e aderir aos princípios políticos da social-democracia, e eleger o parlamento e as eleições como única forma legítima de chegar ao poder.

A posição mais fiel à tradição da esquerda revolucionária era defendida pela tendência da Izquierda Democrática, encabeçada por Daniel Ortega e outros líderes históricos como Tomás Borge, estando em minoria dentro dos organismos de direção do partido.

A segunda posição, por sua vez, era defendida pelo grupo liderado por intelectuais da Direção Nacional como Sérgio Ramirez e Dora Maria Téllez , que taxavam o grupo de Daniel Ortega de “ortodoxos” e com pouca capacidade de adaptação aos “novos tempos”, e propunham a readaptação das orientações ideológicas partidárias em sintonia com uma linha que poderia ser caracterizada mais claramente como social democrata. Esta última tendência enfatizou o diálogo e a concordância com o governo de Violeta Chamorro, bem como a necessidade de moderar as posições mais radicalizadas da FSLN.





Assim, ruptura entre esses dois setores não se resumiam em questões teóricas, mas se estruturavam em duas visões antagônicas de como levar à frente a luta política diária contra as políticas neoliberais. Isto fica mais claro quando se analisa uma questão concreta que dividiu os dois grupos nas discussões da Assembleia Nacional: a questão da privatização.

Diante da proposta do Governo Chamorro de privatizar os serviços públicos, dois grandes grupos de sandinistas se formaram. Os social-democratas propunham uma lei para regulamentar a privatização dos serviços públicos, com o argumento era inevitável, o melhor era colocá-la sob algum controle. Daniel Ortega, no entanto, representando o outro grupo fiel aos ideais da FSLN alegou que era melhor a privatização total dos serviços públicos contra nossa feroz oposição a essa privatização no parlamento e nas ruas, do que uma privatização “abrandada” apoiada e legitimada pelos Sandinistas. Segundo Ortega, o problema não era a forma como estava sendo privatizada, mas a própria privatização; e que a corrupção e o gangsterismo não estavam nas más intenções dos indivíduos que a implementavam, mas no próprio fato de serem  levadas a cabo. Seu conteúdo intrínseco era tornar privado o que era de toda a sociedade, e ainda pior no caso dos serviços, para transformar os direitos fundamentais dos cidadãos, como água, luz e telecomunicações, em negócios escusos.

 Na votação do Congresso de 1994 os que permaneciam fiéis à Revolução Sandinista obtiveram maioria. Demonstrando não ter nenhum compromisso nem com a Frente nem com a Revolução Sandinista, a minoria resolver romper com a Frente e fundar um outro partido: o Movimiento Renovador Sandinista (MRS) que passou a ter uma prática política conciliatória e a atuar como um partido social-democrata, defensor de reformas no capitalismo e não sua abolição completa.

A razão pela qual o setor social-democrata ganhou grande prestigio internacional foi  o fato de que passaram gradativamente a defensores do capitalismo e do imperialismo, sendo hoje a vanguarda das denúncias de que  o Governo de Daniel Ortega é uma ditadura, etc. Por outro lado, grande parte desses dissidentes são intelectuais com certo prestígio internacional alguns deles, como Dora María Téllez, fizeram uma articulação entre a atuação política e a atuação como intelectuais aumentando sua inserção nas redes acadêmicas regionais – vinculadas à FLACSO. No caso de Dora sua atuação como historiadora e analista política de problemas da América Central e, mais especificamente, nicaraguenses lhe forneceu uma ampla audiência internacional. Dessa forma, os intelectuais que traíram a Revolução e se tornaram social-democratas conseguem uma visibilidade como é o caso de Cardenal, Belli ou Ramírez, que ainda constituem, para a opinião pública e os circuitos intelectuais internacionais, a vanguarda do intelectualismo nicaraguense. É importante ressaltar o grande ativismo destes intelectuais na mídia, como Carlos Fernando Chamorro ou em movimentos sociais como o feminista , onde se combina a  reflexão acadêmica com a militância feminista como é o caso de Sofía Montenegro.

O que, por outro lado, mostra uma cada vez maior desconexão destes intelectuais dissidentes com os interesses da classe trabalhadora nicaraguense e com o povo em geral. O MRS, por exemplo, foi muito forte fora do país, mas muito débil dentro dele. Não há um só membro do MRS em Tipitapa, porque é uma cidade muito proletária. É possível que haja membros da classe trabalhadora no MRS em toda a Nicarágua, mas eles são minoria. Eles têm uma enorme influência sobre o setor das ONGs, e são os que têm sido mais ágeis para aproveitar o apoio estrangeiro neste país . Assim, eles foram se ligando cada vez mais ao imperialismo.

Um fator  a se ter em conta é a origem de classe da maioria dos membros que saíram  da FSLN. A maioria era proveniente de famílias oligárquicas anti-Somoza, e que durante a década de 1980 ocuparam altos cargos no governo – como os irmãos Cardenal, que eram ministros de Educação e Cultura, e Carlos Fernando Chamorro, que era editor do jornal Barricada. Muitos deles tinham casas em Los Angeles e Miami, vínculos com setores da esquerda estadunidense e europeia, prestígio na mídia internacional, e acabaram tornando-se escritores famosos, como Gioconda Belli.

Os parlamentares renunciaram à FSLN eram militantes da classe média e média alta da sociedade nicaraguense, muitos deles recrutados para a causa antiditatorial nos últimos anos da década de 70. Durante o governo sandinista da década de 1980, esse grupo ocupou cargos relevantes em ministérios, na diplomacia, no exército e na polícia. Alguns dos membros mais proeminentes têm ligações com famílias tradicionais da burguesia nicaragüense e fortes laços, do ponto de vista econômico e político, com empresários e partidos tradicionais. Dessa forma a derrota eleitoral de 1990 e a saida do Governo Sandinista não teve nenhum elemento de tragédia como foi para a grande parte a dos sandinistas de origem de classe trabalhadora ou popular. Em geral os militantes de origem burguesa retornaram à sua família reassumiram suas funções anteriores a 1979. Um exemplo é a facilidade  como  membros da Direção Nacional do FSLN, conseguiram, em poucos anos, obter um visto dos Estados Unidos e possaram a estudar em universidades neste país.

As lutas dos Sandinistas durante o período neoliberal

 O período 1990-2006 em que predominaram governos da direita neoliberal foi extremamente difícil para a liderança sandinista. De um lado havia a ofensiva neoliberal do  governo, que aplicava um programa radical de reformas com privatizações e ortodoxia econômica. De outro, um clima de desânimo entre as massas com a derrota eleitoral  e ,em nível internacional, o desmoronamento do único Estado operário existente no mundo – a URSS.

A liderança sandinista, no entanto, não se desmoralizou perante  as massas  e manteve  intacta sua estrutura e sua orientação política revolucionária..  A saída da ala reformista ajudou aprofundar e clarificar a linha política da Frente numa conjuntura plenamente adversa. Não foi considerada a opção pela luta armada, dado o enfraquecimento militar da Frente, com  a saída do governo e a grande destruição trazida pela guerra aos contras, que ainda mantiveram ações violentas durante um período. A opção da FSLN  foi pela luta de massas para fustigar e desmoralizar as políticas da direita, que tinham um conteúdo claramente antipopular e favorável ao imperialismo.

 Concretamente, isto vai se materializar, ao longo do período neoliberal, numa estratégia política conhecida pela expressão “governo desde abajo”, com a FSLN ocupando um papel central nas lutas populares de resistência e organizando intensas jornadas de luta nas ruas em defesa das conquistas da revolução – que assumiram muitas vezes formas violentas, devido à presença de grupos armados contrarrevolucionários que se negavam a desmobilizar-se (os recontras) . Coordenada com estes movimentos populares há a luta parlamentar e a manutenção dos  espaços políticos institucionais, em que a FSLN promoveu um complexo jogo de ações políticas, através de acordos e alianças táticas com um setor da direita liberal (Partido Liberal Constitucionalista) e da Igreja Católica (cardeal Miguel Obando Bravo) .

Este aspecto da estratégia da FSLN é usada pela oposição da dita esquerda para acusar a Frente de fazer acordos sem princípios e há os que chegam a inventar bases de simples corrupção nessa atuação. Na verdade essa ação política se vincula a um aspecto  dos fundamentos políticos  do sandinismo e que se origina do pensamento do próprio Sandino. Trata-se de analisar detidamente o comportamento político concreto se setores das classes dominantes e para verificar se pode haver uma ação política comum e não que julgá-las moralmente a priori . Durante a década de 1970 o próprio Carlos Fonseca Amador, no texto Algunos aspectos del trabajo entre las masas (1973) previa um momento em que: alianças ‘temporárias ou mesmo momentâneas’ com grupos burgueses da oposição podem ‘promover a causa da construção da unidade nacional anti-Somoza sob a liderança das classes exploradas’. Essa é a questão central: a liderança das classes exploradas. E mais do que isso, a participação em uma aliança com as classes dominantes pressupõe, segundo Fonseca, ‘contar com uma base de massa própria, composta por aqueles que não dão ouvidos a nenhuma outra organização, senão a nossa; que estão livres de qualquer influência burguesa, cujos interesses são apenas os interesses dos explorados’. Sem essa base de massa própria, os revolucionários arriscam se tornar ‘simples apêndices das forças políticas tradicionais’ .

A grande questão deste período é que, de uma maneira ou de outra, os sandinistas vão praticar uma política de conciliação de classes. É difícil qualificar em que medida esta política afetou ideologicamente o núcleo dirigente da frente, mas certamente algumas ilusões foram suscitadas pela situação existente. Não se pode subestimar os esforços da direção da Frente de manter uma certa independência política num quadro extremamente complexo da luta de classes neste período. De qualquer forma, as ações desenvolvidas após o período neoliberal mostram que  a FSLN não se tornou um mero coadjuvante das forças política burguesas. A frente conseguiu aproveitar o fato do Governo de  Arnoldo Alemán  ser um governo populista de direita, com grandes contradições com os partidos do governo Chamorro que o precedeu, para preservar alguns avanços de organização dos setores populares, em especial no campo econômico como cooperativas, empresas associativas, e pequenas propriedades. Certamente que isso também contribuiu para  dividir as forças da direita, possibilitando à frente conseguir postos no governo, facilitando a chegada posterior de Ortega ao poder.

Os resultados eleitorais , por outro lado, mostram que a Frente não só manteve como aumentou sua influência nas massas, possibilitando finalmente em 2006 uma significativa vitória e a volta ao poder. Nas eleições de 1996, a FSLN obteve 37,83% dos votos, enquanto o MRS, apenas 0,44% – e essa pouca influência nas massas dos dissidentes mostra que ele perderam completamente seu vínculo  com o povo. O retumbante fracasso das políticas neoliberais,  aplicadas principalmente no Governo Chamorro, fez com que a burguesia “patriótica”  passe por um processo de cada vez maior isolamento político, se acercando sempre mais ao imperialismo, o que determinava o aumento das votações na FSLN e o apoio da população, cada vez mais indignada com a situação de opressão e miséria  que os governos neoliberais produziam. Esse processo resultou na expressiva vitória da FSLN nas eleições presidenciais de 2006, embora numa coalizão com uma série de partidos pequenos de direita e de grupos que anteriormente foram seus adversários (líderes eclesiásticos, até mesmo ex-contras, entre outros), chamada Unida Nicarágua Triunfa. Contraditoriamente, a vitória vai contribuir para  a manutenção da política de conciliação de classes e o não enfrentamento ao imperialismo, o que vai caracterizar os governos da Frente Sandinista até 2018. O governo eleito vai ser denominado com a marca desta política: Gobierno de Reconciliación y Unidad Nacional, hegemonizado pela FSLN, mas baseado numa coalizão cujo objetivo era, segundo os Sandinistas,  “atender às expectativas dos setores populares, principalmente simpatizantes fiéis ao sandinismo, e convencer os setores médios da sociedade a fazer parte do projeto” .

A ênfase no discurso da reconciliação e da paz, que se tornou característico dos governos Ortega (2007-), tem suas origens na linha política adotada, mas também  no imenso trauma nacional que foi a Guerra dos Contra. O país passou a viver uma polarização política  que era patrocinada diretamente pelo Governo estadunidense mas acabava tendo  também forças internas que apoiavam a guerra como a maior parte da burguesia e parte do campesinato o que impedia o desenvolvimento  de  qualquer projeto nacional. Tudo isso acaba por impulsionar uma política de conciliação de classe pelo  governo que  tomava a iniciativa de diálogo com diversos setores sociais, religiosos, políticos, econômicos, etc. Mas não havia resposta, pelo menos dos setores dominantes no quadro político nacional. Na campanha  eleitoral de 2006, a oposição ao burguesa utilizou  os mesmos argumentos das campanhas de 1990, 1996 e 2001 para influenciar a decisão do eleitorado, esgrimindo o argumento do possível retorno à guerra e ao bloqueio da década de 1980, caso a FSLN chegasse ao poder.  

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A coalizão derrotada era composta pela burguesia outrora patriótica, agora  traidora (descendentes de famílias criollas de tradição colonial), o imperialismo , através da embaixada dos EUA, os banqueiros, o diário La Prensa e o Consejo Superior de la Empresa Privada (COSEP) – principal entidade política representante dos interesses da burguesia .

Mesmo no período em que era Governo,  a burguesia conservadora perdeu a liderança do exército e da polícia, o apoio da hierarquia da Igreja Católica, tendo que se opor a todas as demais forças do país. Ela   tinha a Presidência da República, mas não tinha nem o apoio de seu vice-presidente. Perdeu completamente a hegemonia sobre as principais organizações sociais e sobre a maioria dos eleitores. Seu único apoio foram organizações financeiras e internacionais (FMI, Banco Mundial), e a embaixada dos Estados Unidos. É importante destacar, onde estavam a esta altura os ditos revolucionários dissidentes? Estavam junto com o povo, mobilizando-o para conseguir mais conquistas? Não, as lideranças do Movimento de Renovação Sandinista (MRS) entraram para a coalizão: com as forças burguesas, trabalhavam até mesmo como assessores do Presidente da República, participavam das marchas da direita, como o chamado Movimento pela Nicarágua. E, pasmem, fizeram bloco com a delegação da direita que foi a Miami para condenar a Frente Sandinista! Além disso seus cabos eleitorais em 2006 foram treinados pelo Instituto Republicano Internacional (IRI) – uma organização ligada ao famoso NED – National Endowment for Democracy – criada pelo Governo dos EUA para fazer campanhas e promover golpes de Estado contra as forças populares na AL e em todo o mundo. E o pior: foram os mesmos homens da NED que treinaram  os membros da Aliança Liberal-Conservadora (ALN), com filiação burguesa e pró-imperialista.

Ao contrário dos integrantes do MRS, os sandinistas verdadeiros organizam , a partir de 2007, um governo em que, pela primeira vez, desde a independência da Nicarágua, a burguesia não integrava mais o governo. Até esta época, todos os governos nicaraguenses, inclusive durante a Revolução Sandinista, incluíram pessoas dos “sobrenomes” elitistas, como Chamorro, Cardenal, Belli, Pellas, Lacayo, Montealegre e Gurdián. A partir daí , esses grupos, inclusive o “revolucionário” MRS, que foram alijados do poder vão ser os principais inimigos permanentes dos sandinistas. Há, no entanto, uma diferença fundamental deste governo de Ortega com os outros governos, inclusive os da Frente antes de 1990.Agora, a FSLN se estruturou como a maior força política na Nicarágua, forçando até mesmo a burguesia (por natureza, o setor mais reacionário  e alinhado ao imperialismo da sociedade nicaraguense) a reconhecer que não eles teriam que conviver com o sandinismo e cooperar, mesmo a contragosto,  com a agenda de defesa dos interesses populares. Em 1979, quando a FSLN tomou o poder na Revolução Sandinista , se constituiu uma correlação de forças muito mais desfavorável, e a burguesia acabou  optando por promover a guerra. Agora, no novo governo, formou-se um modelo de governo tripartite (sindicatos, governo e empresa privada), no qual a burguesia, possuindo uma importância política menor, aceitava as regras impostas pela FSLN e não promovia uma nova guerra, em troca de ter um mínimo de participação nos espaços decisórios.

 Esse modelo funcionou sem grandes instabilidades de 2007 a abril de 2018, até que a burguesia decidiu romper com o governo e iniciar uma campanha de desestabilização do país.

O retorno da FSLN e os governos de Daniel Ortega (2007-2018)

No novo período que se abre, de sucessivas vitórias eleitorais da Frente Sandinista, o imperialismo e a burguesia local tentam se reorganizar para retomar o poder. A incapacidade de derrotar os governos sandinistas pelo voto faz com que se desenvolva uma enorme campanha de difamação, buscando galvanizar a opinião publica interna e externa para derrotar o governo. Infelizmente a isso se juntam forças ditas de esquerda, que passam a considerar o governo sandinista como uma ditadura e a personificar em Daniel Ortega as piores deformações de caráter, morais e de um controle ditatorial do governo de forma pessoal. Trata se de uma campanha típica do imperialismo estadunidense, sem base na realidade, à qual se juntam os setores de intelectuais elitistas e políticos ligados à uma oposição dita de esquerda, com os remanescentes do MRS e outros partidos ditos trotskistas, mas que nada tem a haver com a doutrina e a prática autenticamente revolucionária de Trotsky. Nosso objetivo com este artigo  é analisar concretamente os governos sandinistas e as forças políticas que o compõem , assim como seus inimigos. Não podemos reconhecer em Daniel Ortega  sequer traços desta caricatura de líder  amoral, ditador corrupto e violento que   tentam nos impingir, e que lembram muito mais o discurso stalinista  dos Processos de Moscou contra seus adversários.

Ao contrário, se formos analisar a atuação concreta dos Governos Ortega no período 2007- 2018 veremos que tudo mostra uma grande transformação das condições de vida da população, liquidando com a tragédia neoliberal e possibilitando aos trabalhadores nicaraguenses um nível de vida digno, enfrentado evidentemente as restrições impostas pela estrutura econômica de país capitalista periférico e que não tem, como outros, riquezas naturais capaz de minorar esta situação.  Desde que retornou ao poder, a FSLN levou a cabo políticas de investimento público, valorização da economia familiar, fortalecimento do setor cooperativo e auto gestionário, redução da pobreza e reversão de grande parte da políticas de privatizações da etapa neoliberal . Implantou-se um modelo econômico e social baseado em dois componentes  fundamentais do programa da FSLN: a democracia direta e a economia popular .

 A democracia direta consiste na implementação de um modelo de participação popular integral nos temas do governo, buscando tornar mais efetiva como forma de tornar mais efetiva a democracia representativa, sendo que sua concretização acontece no   Poder Ciudadano. Essa participação é dinamizada por uma nova organização local, os Consejos del Poder Ciudadano (CPC), que buscam tornar realidade o conceito de que o povo é o presidente (Pueblo Presidente). Cada conselho elege coordenadores que trazem as demandas de sua comunidade de acordo com 16 setores [como segurança pública, promoção do emprego, transporte, infraestrutura, saúde e educação, etc] e elaboram propostas para impulsionar a  formulação de políticas públicas.

No seu nível mais importante, 272 representantes eleitos pelo conjunto dos  coordenadores locais  compõem a estrutura representativa da participação popular. Estes, junto com o governo ,  compõem o Gabinete Nacional de Poder Ciudadano. Essa poderosa estrutura de poder popular é que tem possibilitado a implementação concreta de parte importante dos  programas sociais do governo. Os conselhos, por sua vez, administram os programas sociais junto à comunidade, e podem inclusive selecionar (por deliberação interna) os beneficiários desses programas .

 Entre esses programas estariam o Puestos de ENABAS, que oferece alimentos básicos a preços subsidiados; Bono Productivo Alimentario, que distribui animais de criação, sementes e instrução técnica para mulheres no setor rural; e o Usura Cero, que concede empréstimos de microcrédito para o desenvolvimento de pequenas empresas ; além de uma série de medidas visando redução da pobreza, a reconstrução da educação e saúde públicas, campanhas de alfabetização, obras de infraestrutura (estradas, parques, etc.), e leis que promovem a Soberania Alimentar .

A energia renovável (geotérmica, eólica e solar) se tornou 70% da matriz energética do país, aumentando o acesso a luz elétrica nos povoados de 54% para 95,5% . O governo  também restabeleceu a assistência médica gratuita, que recebeu aprovação praticamente unânime, inclusive de fortes críticos do governo. Depois de 1990 este serviço era tão incompleto e em alguns locais inexistente,  que as pessoas simplesmente preferiam ficar em casa e morrer. Agora, os cuidados de saúde são melhores; existem exames laboratoriais e radiografias gratuitos . 139

Outro aspecto da enorme popularidade dos governos da Frente sandinista é o fato de que a economia é feita pelo povo e para o povo. Também chamada de socialismo desde abajo é uma economia de autogestão  em que há uma efetiva socialização da propriedade, sendo que o excedente fica nas mãos dos próprios setores populares, fazendo com que sejam os principais sujeitos econômicos do sistema. Esta economia popular é constituída por pequenos e médios agricultores, trabalhadores informais, autônomos, associações e cooperativas (que controlam a maior parte dos setores da agricultura, pesca, artesanato e transporte). Devido a um forte  investimento público direcionado para incentivar esses setores, eles são os geradores da maior parte da riqueza da Nicarágua, produzindo 90% dos alimentos produzidos no país (assegurando a soberania alimentar e possibilitando a redução da dependência dos empréstimos do FMI), e criando 70% dos empregos (enquanto o setor privado cria apenas 15%) .

Tudo isso tem possibilitado a  independência frente ao capital internacional e providenciado a enorme  base de apoio dos setores populares à FSLN.  Diferente do governo de Lula no Brasil, que reduziu a pobreza mediante o Bolsa Família, que é um programa de transferência de renda feito pelo Governo Federal, Nicarágua tem redistribuído não só a renda mas o próprio capital produtivo para tornar a economia popular autossuficiente. Os setores oprimidos e explorados são aqueles que se tornam dessa forma donos de capital. Em primeiro lugar estão os trabalhadores urbanos que tomaram posse do capital produtivo através da Revolução Sandinista e das lutas que se sucederam. Em segundo lugar estão centenas de milhares de camponeses que se tornado donos da terra em que trabalham, através dos  títulos de propriedade de terra outorgados pelo governo. Finalmente, as nações indígenas, uma população alvo das manipulações do imperialismo, que hoje  possuem  quase uma quarta parte do território nacional através da titulação  coletiva do seu  território.

Não é à toa que os movimentos sociais de trabalhadores urbanos, camponeses e indígenas tenham se constituído como a base de apoio popular  da FSLN o que possibilitou sua volta ao poder.  Em 2017, a Nicarágua tinha balança comercial positiva com os EUA  e era o único país da América Central aa presentar esta situação. Os trabalhadores nicaraguenses adquirem os produtos de que necessitam dos próprios camponeses e artesãos que agregam valor aos recursos naturais locais. Assim , não tem que submeter à  esfera capitalista transnacional, exemplificada na Nicarágua pelas cadeias de supermercados Palí y La Unión, propriedade da Walmart. Como  o dinheiro gasto nos mercados locais acabar circulando na economia nacional, em lugar de ser canalizado às cadeias de valor globais, é mais barato para os nicaraguenses se abastecerem  exclusivamente nos mercados informais.

Outra acusação que se faz ao governo sandinista  é ter continuado a manter  relações com o FMI. Isto levou alguns críticos a dizerem que o governo não se compromete mais  com a mudança revolucionária  da sociedade . Isso não é verdade, como prova a estrutura do governo desde abajo e a economia popular nicaraguense. Além disso, não são levadas em conta as condições concretas da Nicarágua como uma economia periférica e de capitalismo dependente.

A Nicarágua, devido à guerra e à recessão e hiperinflação da década de 80, ficou virtualmente sem formas de financiamento. A Nicarágua é uma economia agroexportadora, que não tem um produto de alto valor no mercado internacional como tem a Venezuela. O fato de ter uma grande empresa do setor petrolífero, tem dado ao governo venezuelano  maior liberdade e autonomia  para adotar medidas de política econômica e social de acordo com suas necessidades e seu conflito com o imperialismo leva a que este determine  sanções financeiras e econômicas importantes. Nesse período que vai de 2007  a 2018 a Nicarágua buscou uma certa atitude branda do imperialismo, que por razões estratégicas aceitou a negociação da dívida externa do país em condições razoáveis. O fato de manter internamente uma política de conciliação de classe,   possibilitou que as classes dominantes internas mantivessem uma política de convivência com os governos da Frente.

Por outro lado, o governo da Nicarágua pediu e obteve a sua participação na Alianza Bolivariana para los Pueblos de Nuestra América (ALBA), uma instituição composta por um grupo de nações latino-americanas que desejam uma  mudança radical na distribuição de riqueza e nas relações Norte-Sul, e  buscam uma integração regional que possibilite alternativas às instituições financeiras internacionais e ao desenvolvimento capitalista. O acordo comercial com a Venezuela, especialmente no campo energético, tornou-se uma das principais bases da economia nicaraguense. Isto mostra que os  sandinistas, tem um projeto claro anti-imperialista, pois acreditam que não basta transformar o sistema político e econômico: é fundamental criar alternativas que possibilitem destruir as amarras que determinam a subordinação ao sistema imperialista.

Assim, as transformações revolucionárias  na Nicarágua se integram na  transformação regional que começou a se concretizar através das iniciativas da ALBA. A ALBA criou bases para a realização de mudanças  importantes em seus países membros, garantindo ajuda  econômica e estruturando acordos preferenciais. Sem a solidariedade  de governos com orientações  de esquerda  semelhantes, seria impossível a Nicarágua implementar seus projetos mais importantes de transformação social.

O governo Ortega desenvolveu , em  relação aos EUA, a mesma relação que buscou com a burguesia patriótica. Não deixa de ser uma  tentativa de colaboração com o imperialismo, mas não chegou a tanto. Ortega apenas adotou como estratégia política não entrar em conflito direto com o Governo dos EUA, visando não ser novamente atacado como na época da Guerra dos Contras, já que a experiência histórica é cheia de exemplos da enorme violência dos estadunidenses contra a Nicarágua ao tentar ser autônoma.  A atitude básica do governo foi, então, não ter enfrentamentos com o governo dos EUA,  inclusive porque o discurso oficial foi, neste período, caracterizado por chamamentos à paz e reconciliação. .

A estratégia de conjunto deu certo , tanto no aspecto externo , em que não houve, até 2018 ataques dos EUA, e no aspecto interno, em que a Nicarágua, mesmo sendo considerado um dos mais pobres países da America Central conseguiu avanços econômicos inegáveis. No aspecto social ,além de  cumprir os objetivos do Desafio do Milênio para o prazo de 2015   eliminando  a pobreza extrema, a fome e a desnutrição também instituiu a  educação primária universal e reduziu a mortalidade infantil em 52% e a materna em 60%. Segundo o Banco Mundial, entre 2007 e 2018 a pobreza foi reduzida quase pela metade, de 48% para 25% . Nicarágua também é o país  com o menor nível de desigualdade de gênero da América Latina, e o 5º do mundo, segundo o Fórum Econômico Mundial . Mesmo durante a crise financeira global, Nicarágua  mantinha em 2010 um crescimento econômico de 4,5% .

Um outro aspecto importante, embora não conste de pesquisas, é o modelo de organização das forças policiais e a maneira como a Nicarágua conseguiu reduzir o narcotráfico, sem contudo se submeter à política de “guerra às drogas” dos EUA.  A Nicarágua é um dos poucos países da região a deter o desenvolvimento do crime organizado em seu território,  a ponto de ser considerada pelo The Economist o país mais seguro da América Latina , e reduziu também a imigração a números irrisórios . A Polícia Nacional nicaraguense tem demonstrado grande eficiência no combate ao tráfico, além de ter estruturado a polícia como força comunitária, com reduzido índice de corrupção e  forte presença feminina mesmo nos altos cargos. Nos bairros de Manágua os policiais se reúnem com a população, anotando as coisas que eles devem fazer e vice-versa.

O conjunto de todas essas políticas certamente contribuiu para o crescimento da popularidade de Daniel Ortega e para sua reeleição em 2011, com 63% dos votos, e em 2016, com 72,5%. Nessas eleições a OEA acompanhou oficialmente a votação e reconheceu o resultado como expressão legítima da vontade do povo . Em 2017, 159 pesquisas da empresa M&R Consultores mostraram que o governo Ortega possui uma das mais altas taxas de aprovação do hemisfério inteiro, chegando a 77,5% . Mesmo assim, ONGs  como Hagamos Democracia fizeram uma campanha acusando o Governo de  fraude eleitoral e logo foi descoberto que esta ONG, como outras, receberam financiamento estrangeiro diretamente da NED pelo menos desde 2014.

 O sucesso do Governo nas políticas sociais e econômicas internas, além dos bons resultados eleitorais reavivou o sentimento anti nicaraguense nos EUA. Um pais que se integrava à ALBA, que defendia publicamente o socialismo e que via crescer sua influência na America Latina, era  algo insuportável para o imperialismo estadunidense. Na verdade, desde a primeira vitória de Ortega, em 2006, o governo dos  EUA cortou a ajuda financeira à Nicarágua . Mas foi a partir de 2016 , como reação à reeleição de Ortega que se iniciou um processo de perseguição política ao Governo da Nicarágua. Foi a partir daí que o Governo dos EUA começou a falar em  aplicar sanções para a Venezuela, o Congresso estadunidense começou a discutir a lei Nicaragua Investment Conditionality Act, conhecida como Nica Act, elaborada pela deputada cubano-americana Ileana Ros-Lehtinen. A lei tinha como objetivo sufocar o Governo, suspendendo todos os empréstimos internacionais para Nicarágua até que ele “tomasse medidas efetivas para celebrar eleições livres, justas e transparentes”. A estratégia do governo nicaraguense de tentar ter um relacionamento amistoso com o Governo dos EUA começava a fracassar.

Houve uma escalada no grau de violência política  contra a Nicarágua, o que se refletiu no aprofundamento das exigências da lei.  Em abril de 2017 foi apresentada uma versão ainda mais severa do projeto que propunha mudanças substanciais no “restabelecimento da democracia”, o “combate efetivo à corrupção, proteção a representantes de ONGs, jornalistas, sindicalistas, respeito aos direitos humanos, e que haja livre organização de partidos políticos opositores”.  Essa lei tem como marco o ano de 2018, quando foi desencadeada uma ofensiva golpista contra o governo por parte dos representantes da burguesia “patriótica em conjunto com as iniciativas do imperialismo norte americano. A lei foi finalmente votada e aprovada no Congresso dos EUA em novembro de 2018 ,  depois que a tentativa de golpe iniciada em 18 de abril foi derrotada pelo Governo Ortega. Isso explica porque John Bolton, Secretário de Segurança Nacional dos EUA, denominou  Cuba, Venezuela e Nicarágua como a “troika da tirania” .

 A determinação dos EUA na perseguição política ao Governo da Nicarágua se explica , em primeiro lugar, pela preocupação com a proximidade do país com a Rússia. Essa preocupação se deve ao fato de que, ao contrário de outros países da A.L, Nicarágua não manteve uma relação exclusiva com os EUA, sempre buscando o intercambio com outros países que são considerados inimigos pelos EUA. Por exemplo,   na luta contra o narcotráfico, Nicarágua celebrou acordos de treinamento e compra de armas oferecidas pela Rússia . Outro fator que desagrada aos EUA é a colaboração da Nicarágua com a  ALBA e principalmente a ajuda que a Venezuela veio proporcionando à Nicarágua. Outro aspecto, mais diretamente político, foi o temor de Washington de que a “onda rosa”  de governos socialistas e nacionalistas, eleitos na maioria dos países  da America Latina se espalhasse pela América Central.   Isso realmente aconteceu com a  eleição de Manuel Zelaya como Presidente de Honduras em 2005 e a reeleição do líder revolucionário nicaraguense Daniel Ortega em 2006, mas o golpe “brando”  hondurenho de 2009 provou que os EUA queriam implementar no continente a mesma política que aplicou nos países ex soviéticos de mudança de regime, a fim de remover as governos latino-americanos considerados “ameaças à segurança nacional dos EUA”.

Essa política foi chamada de  “Operação Condor 2.0”, em lembrança da Operação Condor original, que se efetivou na década de 70 do sec. XX , envolvendo uma aliança de todas as ditaduras latino-americanas, comandadas pelos EUA,  em torno de um objetivo comum: derrotar as forças de  esquerda.  Agora os EUA organizaram simultaneamente uma série de mudanças de regime “brandas” na Argentina e no Brasil e posteriormente no Uruguai e Paraguai, buscando impedir o desenvolvimento da independência estratégica do Mercosul e implementando  a guerra híbrida forte na Venezuela coma tentativa de um golpe de Estado final para reafirmar a hegemonia hemisférica dos EUA.

Considerando que governo bolivariano de Maduro vive sob um cerco constante dos EUA, impedido de fazer transações com exterior devido às sanções que está submetido, a possibilidade de manutenção do desenvolvimento autônomo da Nicarágua passou também a ser colocada em dúvida. Na hipótese de queda do regime venezuelano, haveria uma dificuldade ainda maior  para que os  estados multipolares menores, mais fracos e mais empobrecidos da região mantivesse  sua integração estratégica.

Um outro “pomo de discórdia” entre EUA e Nicarágua é a questão do projeto de 2014 para a construção de um canal interoceânico em parceria com a empresa chinesa HKND Group, sabidamente um antigo objetivo estratégico dos EUA. É devido a este projeto, e principalmente a participação da China que  os EUA estão organizando em ritmo acelerado uma Guerra Híbrida e de desestabilização na Nicarágua. Washington não suporta sequer a idéia de que uma potência emergente e não hemisférica como a China tenha acesso total à América Central e ao Mar do Caribe, ambos considerados o “quintal” dos EUA há séculos. Por isso, não economiza  esforços em, controlar, manipular  ou até mesmo interromper essa iniciativa.

 Assim o objetivo das sanções à Nicarágua é, na verdade, deter também a China na sua política da Nova Rota da Seda, neste caso visando o planejado Canal da Nicarágua. Um vazamento de documentos do Departamento de Estado dos EUA, realizado em 2015 por Roberta Jacobson, Secretária de Estado adjunta para Assuntos do Hemisfério Ocidental, confirma a preocupação com as relações com a Rússia e o canal interoceânico com a China. Os EUA  aproveitarão, daqui por diante , todas as oportunidades para desestabilizar os regimes da Nicarágua, Cuba e Venezuela.

O governo nicaraguense está cancelando fortemente todos planos de investimento estrangeiro, para reduzir sua dependência externa, alterando sua política com relação ao  petróleo, investindo em setores da eletricidade, abastecimento de água, transporte e comunicação; e tomando atitudes efetivas para terminar o processo de confisco de propriedades de cidadãos dos EUA.  O documento explicita claramente a intenção de substituir o atual governo por um outro governo que garanta “uma Nicarágua economicamente integrada a outros países da América Central, que colabora efetivamente com uma crescente gama de questões e desenvolve instituições e valores democráticos”. Os valores democráticos citados tem a haver com a busca de incentivo à iniciativa privada e os investimentos externos , nunca se vinculando à democracia em termos efetivos.   O documento recomenda que  se possa  “aproveitar as áreas de cooperação existentes e continuar nossos esforços para fortalecer o envolvimento com empreendedores, jovens e municípios emergentes”, dedicando esforços para “criar mais espaço para a sociedade civil e aumentar as oportunidades econômicas para todos os nicaraguenses” . O documento possibilita que tenhamos uma visão objetiva  de como os EUA desenvolvem a ofensiva contra a Nicarágua: uma política de efeito gradual, usando como estratégia a “promoção de lideranças emergentes”, o “fortalecimento da sociedade civil” e de uma “mídia independente” para criar as condições para a operação de mudança de regime. Para isto se apela para a NED, e a própria CIA para organizar operações de desestabilização do regime nicaraguense como se deu no Leste Europeu, a Primavera Árabe e o Euromaidan na Ucrânia.

Nesse quadro, é perturbador perceber que vários intelectuais,  jornalistas e partidos de esquerda no Brasil  tem se prestado a participar dessas operações, em que tentam caracterizar o Governo como uma ditadura e Ortega como um monstro ególatra, possivelmente pedófilo e que só pensa em acumular riquezas e manipular o Governo. Uma caricatura típica da operações estadunidenses e que se aproximam àquelas feitas sobre os  Governos Lula e Dilma no Brasil. O objetivo é o mesmo:  alijar lideranças populares do governo e implementar políticas neoliberais que são responsáveis pela situação falimentar em que se encontra a economia brasileira, poucos anos após o Golpe de 2016 e a ascensão ao poder do atual nefasto ocupante do Palácio do Alvorada e seu séquito de generais fascistas.

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