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Política

África Insurgente: o Níger e a revolta popular

Por Ricardo Rabelo


Para muitos tudo se resumiu a mais um golpe de Estado militar quando general Abdurahaman Tchiani anunciou a tomada de poder por oficiais rebelados contra “um presidente eleito” em 26 de Julho. Mas o quadro no domingo era outro. Nada de tanques de guerra ou prisões de líderes populares. Uma grande e ruidosa manifestação popular percorreu as ruas de Niamey, a capital, em apoio ao novo governo, em meio a bandeiras e gritos de apoio à Rússia. A reação do imperialismo foi imediata: o Governo dos EUA e da França comunicaram a suspensão da “ajuda econômica” ao país e alguns órgãos de imprensa chegaram a falar em invasão militar do país.
Logo ficou claro que a estratégia do imperialismo era outra: fazer que a retaliação ao golpe insurrecional fosse promovida pelos próprios africanos. Reunida às pressas em Abuja, capital da Nigéria, as Cúpulas Extraordinárias da Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO) e da União Econômica e Monetária do Oeste Africano (UEMOA), realizadas em 30 de julho de 2023 lançaram um ultimato aos líderes do golpe: eles deveriam libertar da prisão o presidente preso e efetivar o restabelecimento da “ordem constitucional na República do Níger” dentro de “uma semana”. A CEDEAO também concordou em “suspender todas as transações comerciais e financeiras” entre seus Estados-membros e o Níger, assim como em congelar “os bens de oficiais militares envolvidos na tentativa de golpe”.
Em anos recentes, com o país sob pressão de grupos islâmicos como a Al Qaeda e Estado Islâmico, o Níger acabou se tornando um campo de batalha em que tropas de dois países vizinhos, Mali e Burkina Faso (igualmente ex-colônias francesas com forte presença política e econômica da França), que conseguiram derrotar as milícias e tomaram o poder no Mali.
Juntamente com o Níger, esses dois países contavam anteriormente com a ajuda de um grande contingente de tropas francesas. No entanto, com a continuação de ataques de grupos islâmicos, cresceu um sentimento anti-França, com grande parte da população desses três países passando a acusar o governo francês de abandoná-los, de não fazer o suficiente para protegê-los.
Ao assumir o poder no Mali, a junta militar acolheu os mercenários do Grupo Wagner que forçaram a saída das tropas francesas e em seguida expulsaram milhares de voluntários da ONU que estavam no país em missão oficial.
Apesar dos ataques de militantes islâmicos continuarem ocorrendo no Mali, a junta militar que tomou o poder em Burkina Faso também se aproximou da Rússia e igualmente expulsou centenas de militares franceses daquele país.
Estes governos de Mali e Burkina Faso afirmaram seu apoio inabalável ao novo governo. Segundo os governos do Mali e do Burkina Faso, a sua posição é motivada principalmente pela solidariedade panafricana para com o Níger. Condenam a política punitiva adoptada pela CEDEAO e UEMOA porque aumenta o sofrimento do povo e põe em perigo o espírito pan-africano. Esta mensagem dirigida à CEDEAO é também uma mensagem dirigida a França, a quem os militares acusam de querer iniciar uma intervenção militar a pretexto de libertar Bazoum, o presidente deposto. Além disso, Burkina Faso e Mali alertaram que qualquer intervenção militar contra o Níger será vista como uma declaração de guerra contra eles. Eles também alertaram que qualquer ação militar da CEDEAO contra o Níger os levaria a se retirar daquela organização regional. O mesmo foi assegurado pelo governo da Guiné. A posição é baseada em profunda indignação com a atitude precipitada e aventureira de alguns líderes políticos da África Ocidental. No que diz respeito à Argélia, o governo também exige que o presidente deposto retorne ao cargo, segundo um comunicado do Ministério das Relações Exteriores divulgado recentemente. No entanto, ele quer que a restauração seja feita por meios pacíficos, para evitar que a região afunde ainda mais na instabilidade. O governo argelino opõe-se a uma intervenção militar estrangeira. O governo não ficará de braços cruzados se seu vizinho enfrentar uma invasão estrangeira. O país do norte da África quer se coordenar com a Rússia para responder à crise regional, bem como à guerra que pode estourar em breve. O chefe de gabinete argelino viajou a Moscou para se encontrar com Sergei Shoigu, o ministro da Defesa russo. O chefe do Estado-Maior argelino também voou para Moscou. Em Junho, durante o Fórum Económico Internacional realizado em São Petersburgo, o Presidente argelino encontrou-se com Putin para a conclusão de um acordo de parceria estratégica, enquanto o Primeiro-Ministro viajou na semana passada para a Cúpula da África. A Argélia tem um dos maiores, mais bem equipados e modernos exércitos da África, tornando-se um dos países mais poderosos do continente. A Rússia é o principal parceiro militar da Argélia há décadas. 73% das importações militares da Argélia vêm da Rússia.
O Níger tem 24,4 milhões de habitantes, 40% deles vivem em extrema pobreza, com renda inferior a US$ 2,15 por dia. Como em outros países do Sahel, ex-colônias francesas, o descontentamento contra a metrópole é cada vez maior. Em meados do ano passado, quando o deposto presidente Bazoum aprovou a redistribuição das tropas francesas de Barjan, várias organizações políticas começaram a intensificar os protestos contra a França. A principal delas é o movimento M62 – “União sagrada pela salvaguarda da soberania e dignidade do povo”, formado há um ano por uma coalizão de sindicatos e movimentos da sociedade civil. Eles lideraram apelos contra o aumento do custo de vida, a corrupção e a presença de tropas francesas: o movimento afirma ser “anti-imperialista e anti-francês”. Fundado na esteira de uma mobilização em Burkina Faso contra a presença militar da França no país, desde sua criação organizou diversas manifestações para exigir a saída da força antijihadista francesa Barkhane do Níger. Este foi particularmente o caso em setembro de 2022, em Niamey. A marcha reuniu várias centenas de pessoas e foi pontuada por slogans como “Fora Barkhane”, “Abaixo a França” ou “Viva Putin e a Rússia”
O governo deposto proibiu e reprimiu violentamente vários protestos convocados pelo M62 e seu líder Abdoulaye Seydu, que foi preso por nove meses em abril do ano passado por “perturbar a ordem pública”.Foi o M62 que organizou a manifestação de domingo, onde também estiveram presentes grupos de menor dimensão da sociedade civil como o Comité de Coordenação da Luta Democrática (CCLD) Bukata e a Youth Action for Niger. O M62 apoia os militares da Junta e denuncia as sanções da CEDEAO e UEMOA pelo golpe.
Enquanto as lideranças da CEDEAO enviam uma delegação a Niger para tentar negociar com o governo insurgente, a atitude do imperialismo é clara, não aceitam nada menos que o restabelecimento do governo deposto e tudo farão para derrubar os “golpistas”. A França, ex-potência colonial, que condenou o golpe militar, ainda mantém um contingente de 1.500 soldados no Níger.
O chefe da diplomacia da União Europeia, Josep Borrell, também declarou que o bloco não reconhece “e não reconhecerá as autoridades golpistas” e anunciou no sábado a suspensão da cooperação de segurança com o Níger, assim como a ajuda orçamentária. O secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, garantiu por telefone a Bazoum, que apesar do isolamento tem conseguido receber telefonemas de alguns dignitários, que ele conta com o “apoio inabalável” de Washington.
A reação do governo insurgente foi imediata: anunciou a suspensão da exportação de urânio e ouro para a França. Essa decisão coloca o país francês, que produz cerca de 70% de sua eletricidade a partir de energia atômica, em uma situação problemática. Grande parte do urânio usado como combustível para os 56 reatores nucleares que alimentam 18 usinas francesas vem da nação africana. Segundo o jornal Liberation, 34,7% das 6.286 toneladas de minério importadas pela França em 2020 vieram do Níger, à frente do Cazaquistão (28,9%), Uzbequistão (26,4%) e Austrália (9,9%). Desde então, as importações caíram e o urânio nigeriano supre atualmente entre 10% e 15% das necessidades das usinas francesas, estima o grupo estatal Orano, que explora depósitos de urânio no norte do Níger.
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A força das massas

No domingo (30/7), milhares de pessoas tomaram as ruas da capital, Niamey, numa manifestação de apoio aos militares. Muitos carregavam bandeiras da Rússia. A manifestação se dirigiu primeiro para a Assembleia Nacional do país. Depois, quando foi divulgada a notícia que a França iria invadir o Niger, a manifestação se dirigiu para a embaixada francesa. A multidão atacou e destruiu a embaixada da França, em um claro protesto contra os antigos colonizadores. Os manifestantes arrancaram a placa da embaixada, apedrejaram e atearam fogo em bandeiras francesas e em uma das portas do prédio. Os protestantes também jogaram pedras e usaram troncos de madeira para destruir os portões e muros do local. Durante o ataque, eles também exaltavam o presidente Russo, Vladimir Putin, empunhando bandeiras da Rússia.
As Vozes da África
As mudanças pretendidas por governos e o população do Níger refletem efetivamente as decisões adotadas na última Cúpula Rússia- África. A bem-sucedida segunda Cúpula Rússia-África de 27 a 28 de julho representa um avanço extraordinário no desenvolvimento de uma nova ordem mundial livre da dominação das potências imperialistas ocidentais. Delegações de 49 países africanos participaram da cúpula, incluindo 17 chefes de estado. Adotaram uma declaração final de 74 pontos sobre praticamente todas as áreas de cooperação, comércio e segurança, com um preâmbulo que esclarece os princípios fundamentais que devem reger as relações internacionais.
De facto, a Declaração Final da Cúpula é um claro desafio para o Ocidente porque reflete o papel crescente e a influência global da África e da União Africana como pilar essencial de um mundo multipolar.
Ela insiste na necessidade de se opor ao neocolonialismo expresso na imposição de condições e duplicidades que impedem a tomada de decisões soberanas sobre os caminhos do desenvolvimento. A Rússia e a África também rejeitam o uso de medidas coercitivas e expressaram o compromisso dos países signatários “com os princípios e propósitos fundamentais da Carta das Nações Unidas, endossando a salvaguarda e o respeito ao direito internacional e enfatizando a necessidade de todos os Estados aderirem a isto.”
A Federação Russa se comprometeu em patrocinar a expansão da representação da África no Conselho de Segurança da ONU. Além disso, uma verdadeira bomba: a Federação Russa vai eliminar a dívida bilateral com os países africanos no valor de vinte e três bilhões de dólares e vai apoiar as nações africanas a desenvolver sua infraestrutura energética. Outra bomba foi a promessa de envio de toneladas de grãos grátis para 6 países africanos. E o direcionamento das exportações russas de grãos para o continente. De acordo com o Presidente Putin, apenas 3% dos grãos exportados pela Ucrânia vieram para a África. Efetivamente, a Rússia está promovendo mais de 30 projetos de energia elétrica em 16 países africanos e projetos de infraestrutura de gás estão sendo negociados para facilitar o embarque de gás liquefeito.

Sobre a questão da soberania, o chefe do Conselho Presidencial da Líbia, Mohamed Younis Ahmed Al-Manfi, disse: “A África acredita que foi submetida a uma exploração injusta por vários séculos e que, embora formalmente todos os países tenham se livrado do jugo colonial, temos ainda não conseguiu criar Estados genuinamente nacionais. Devemos agora nos esforçar, juntamente com a União Africana, para mudar o sistema de membros do Conselho de Segurança da ONU… O Ocidente recentemente continuou a preservar sua posição dominante. Ele está tentando nos pressionar amplamente, usando nossas dívidas financeiras em seu próprio interesse, destruindo nossas economias e aumentando a pobreza e a miséria em nossos países de todas as maneiras possíveis”.
São as vozes de um continente marcado pela exploração colonial desde sempre e que agora passam a ser ouvidas. O presidente de Uganda, Yoweri Museveni, comentou: “A independência para a maioria dos países africanos não significa uma desconexão saudável com as economias imperialistas. Até agora, muitas das economias africanas ainda enfrentam os estrangulamentos e distorções da era colonial. Embora alguns progressos tenham sido feitos, ainda há muito a ser feito. ”
O Presidente do Congo, Denis Sassou Nguesso, comentou ao Presidente Putin: “ É impossível industrializar o nosso continente sem eletrificação. Você se lembrará do famoso slogan do grande revolucionário de seu país: ‘O comunismo é o poder soviético mais a eletrificação de todo o país’. Entretanto, hoje, 600 milhões de africanos, repito este número, 600 milhões de africanos vivem sem eletricidade.”
O presidente do Mali, Assimi Goïta, disse: “A Rússia conseguiu mostrar seu status de parceiro fiel do Mali em tempos difíceis, foi leal, dinâmica e nos ajudou a enfrentar as dificuldades, nos acompanhou e respeitou nossa soberania. Isso é muito importante para restabelecer a paz, a estabilidade e a segurança, pelo que agora devemos, acima de tudo, proteger a nossa população e defender a integridade territorial do nosso país. Essa escolha estratégica é muito importante para nós e, claro, devemos ser completamente independentes e autossuficientes e fortalecer nossas forças armadas. É por isso que, no Mali, temos uma parceria militar com a Federação Russa.”
Tendo em conta estas fortes denúncias , que se deram na maioria dos líderes africanos, não é de estranhar que nestes dias a primeira secretária de Estado adjunta dos EUA, Victoria Nuland, se desloque à África do Sul, Costa do Marfim e República Democrática do Congo. Seu objetivo não é ouvir estas vozes, nem negociar ajuda. Ela vai apenas para comunicar as ordens do império para serem ouvidas e acatadas pelos governos da região. Mas dessa vez ela vai ouvir o eco dessas vozes e a rejeição, pela grande maioria dos países africanos, do jugo neocolonial, do racismo e da arrogância, do cinismo e da hipocrisia, dos Estados Unidos e da União Europeia.
Outra voz poderia fazer coro com os países africanos hoje: “Enquanto existir o imperialismo, por definição, ele exercerá seu domínio sobre outros países; essa dominação é chamada de neocolonialismo hoje. O neocolonialismo se desenvolveu primeiro na América do Sul, em todo um continente, e hoje começa a se fazer sentir com crescente intensidade na África e na Ásia. Sua forma de penetração e desenvolvimento tem características distintas; Um é o brutal que conhecemos no Congo. Força bruta, sem consideração ou cobertura de qualquer tipo, é sua arma extrema. Há outra mais sutil: a penetração nos países politicamente liberados”.(Ernesto Che Guevara, em pronunciamento feito na Argélia em Fevereiro de 1965.

03/08/2023

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